segunda-feira, 1 de novembro de 2010

DALAI LAMA BUDISMO E CIÊNCIA

DALAI LAMA

Se não fosse um religioso, o 14º Dalai Lama poderia ter se tornado um pesquisador. Desde criança, o monge gostava de mirar as estrelas com seu telescópio. Sem estudo científico prévio, deduziu, ao observar as sombras na superfície da Lua, que o corpo celeste não emitia luminosidade, ao contrário do que ensinavam alguns textos budistas. Foi só o começo de sua relação com a ciência, que se consolidou em outubro de 1987. Nessa data, passou uma semana reunido com cinco cientistas ocidentais na Índia.

A proximidade entre o budismo e as ciências cognitivas, pauta das discussões, deu origem ao Instituto Mind and Life (Mente e Vida), sediado nos EUA. A associação, dedicada a investigar a mente por meio das tradições científicas e budistas, promove encontros anuais entre o religioso e homens da ciência. 'Em vista de alguns elementos dos ensinamentos de Buda serem incompatíveis com nosso atual conhecimento do mundo, a validação final dependerá da autoridade do raciocínio e da lógica', declarou o Dalai Lama no primeiro encontro com pesquisadores. Afinal, o próprio Buda estimulava seus discípulos a testar suas afirmações. Qualquer semelhança com o método científico é uma coincidência muito bem-vinda, que o Dalai Lama celebra em 'The Universe in a Single Atom' [O Universo em um Único Átomo], seu livro mais recente.

Por que um líder espiritual, porém, estaria tão interessado em desvendar os mistérios da física, química, cosmologia e neurobiologia? Certa vez, o Dalai Lama disse ao psicólogo Daniel Goleman, autor de 'Inteligência Emocional', que o budismo e a ciência não são perspectivas conflitantes acerca do mundo, mas métodos diferentes de chegar ao mesmo objetivo: a busca pela verdade. Para ele, investigar a realidade é essencial ao budista, e a pesquisa científica pode expandir seus conhecimentos. Entretanto, o religioso explica que sua meta ao colaborar com pesquisas neurocientíficas - principalmente as que estudam a meditação - não é aprimorar o budismo, mas contribuir para o benefício da sociedade, pois ele acredita que, com a educação da mente, as pessoas podem lidar melhor com suas emoções.

O Dalai Lama já declarou diversas vezes - e reafirma em seu novo livro - que, se a ciência provar que algum preceito budista é incoerente, ele deve ser alterado. Um exemplo disso é o 'sistema Abhidharma', uma das tradições da cosmologia no budismo. O Abhidharma descreve um planeta Terra chato, ao redor do qual corpos celestes como a Lua e o Sol revolvem. 'O budismo deveria abandonar muitos aspectos da cosmologia Abhidharma', escreve em 'The Universe in a Single Atom'. O mestre procura não apenas entender as descobertas científicas, mas também compará-las com as lições milenares do budismo. 'A descrição do comportamento de partículas subatômicas nos níveis mais diminutos possíveis traz o ensinamento de Buda sobre a natureza transitória de todas as coisas', relaciona.

Em outros aspectos, budismo e ciência divergem. O lama [mestre] conta que, certa vez, um neurocientista lhe disse que todos os estados mentais se originam de estados físicos, e nunca no caminho contrário. 'A visão de que todos os processos mentais são necessariamente físicos é uma suposição metafísica, não um fato científico. Sob o espírito da investigação científica, é fundamental que a questão continue aberta', registra na obra.

O Dalai Lama lembra que, de acordo com o paradigma corrente da ciência, o único conhecimento válido é aquele derivado de um método estritamente empírico, apoiado pela observação, inferência e verificação experimental.

Cientistas próximos ao Dalai Lama não estão livres de críticas de colegas. Um estudo de Antoine Lutz, em parceria com o psiquiatra Richard Davidson, foi alvo de controvérsias. Os pesquisadores investigaram a mente de oito monges budistas enquanto eles meditavam sobre compaixão. Os resultados foram comparados com os de um grupo de dez colegiais, que haviam aprendido a meditar pouco antes do experimento. Os autores concluíram que os monges produziram padrões de ondas gama - associadas à concentração e ao controle emocional - muito mais fortes que os dos estudantes. Porém críticos alegam que diversos fatores, como diferença de idade entre os voluntários, podem ter influenciado o resultado. Para eles, o estudo não prova que a meditação promove emoções positivas.

'É importante preservar os rigores científicos enquanto mantemos os componentes espirituais dessas práticas. Do contrário, podemos medir algo diferente daquilo que intencionamos', pondera Andrew Newberg, professor de psiquiatria da Universidade da Pensilvânia.

Não é à toa que a meditação é um forte ponto de encontro entre budistas e cientistas. Para Daniel Goleman, todas as pesquisas relacionadas à prática possuem um objetivo comum: testar a maleabilidade do cérebro. 'Há uma década, os neurocientistas acreditavam que nossos neurônios não se modificavam ao longo da vida. Hoje já sabemos que isso não é verdade, e ganham força os estudos sobre neuroplasticidade: a noção de que o cérebro muda conforme nossas experiências', conta Goleman no livro 'Emoções Destrutivas', em que descreve os debates ocorridos em um dos encontros do Mind and Life. Se o treino mental pode ajudar a produzir emoções positivas, a meditação parece ser a melhor 'ginástica' para atingir esse objetivo. Associadas ou não à religiosidade, as práticas meditativas são variadas. 'Algumas focam frases, imagens ou palavras, enquanto outras trabalham em uma 'limpeza' da mente e descanso no sentido de atingir a consciência pura', diz Newberg. 'Praticar meditação é questionar-se', complementa a monja zen Coen Sensei.

Outro estudo que despertou interesse na comunidade científica foi o da neurocientista Sara Lazar. Ela desenvolveu a hipótese de que a meditação não somente alteraria ondas cerebrais, mas também poderia modificar estruturas físicas do cérebro. Para testar sua idéia, mediu a espessura do córtex, a parte mais externa do cérebro, de voluntários com e sem experiência nas práticas meditativas. Sua equipe descobriu que áreas associadas à atenção e ao processamento sensorial no córtex eram mais espessas nos meditadores. Além disso, o estudo mostrou que a diferença era maior nos mais velhos, sugerindo que a regularidade da meditação pode minimizar o estreitamento do córtex, natural no envelhecimento. 'Nossas descobertas são consistentes com outros relatos, que demonstram que hábitos como tocar um instrumento musical também estão vinculados a um ganho de espessura do córtex', afirmam os autores.

Além de afetar ondas, função e estrutura, a meditação pode interferir na química cerebral. Um estudo do Instituto John F. Kennedy, na Dinamarca, demonstrou que, durante a prática, o nível de dopamina no cérebro aumenta. Esse neurotransmissor é relacionado a sensações de prazer e motivação. Embora seja importante confirmar os resultados, outros trabalhos sugerem que a meditação ajuda a reduzir o estresse e melhora o sistema imunológico. Alguns planos de saúde nos Estados Unidos já oferecem descontos para os associados que a exercitam com regularidade.

'Como a ciência ainda não dispõe de instrumentos para mensurar objetivamente nosso mundo interior, as práticas meditativas, não apenas do budismo, fornecem importantes informações sobre esse aspecto de nossa natureza', diz a psicobióloga Elisa Kazasa, pesquisadora da Unifesp. 'Elas podem complementar informações obtidas por meio de instrumentos científicos, como inventários psicológicos, aparelhos de registro fisiológico e a moderna neuroimagem funcional', opina. É o que também pensa Alan Wallace, ex-monge tibetano e um dos intérpretes do Dalai Lama nos encontros do Mind and Life. Wallace compara as práticas meditativas com um telescópio destinado a 'olhar para dentro', para que possamos conhecer nossa consciência.

'Acho maravilhosa essa relação entre a ciência e o budismo, já que o próprio Buda era um cientista do interior', diz o lama Michel Rinpoche. O monge ficou conhecido há alguns anos como o 'pequeno Buda brasileiro', por ter sido identificado como a reencarnação de um lama tibetano. 'No Ocidente, ciência e religião sempre caminharam separadas. Por isso, não é de se admirar que haja uma resistência dos cientistas a aceitar o budismo', afirma a psicóloga Bel César, mãe do lama Michel e ex-presidente do Centro de Dharma da Paz. 'No entanto, o budismo não é uma religião, ou seja, um conjunto de dogmas. É uma filosofia que investiga, assim como a ciência, a natureza da mente', ressalta. A psicóloga toca em um ponto fundamental: o budismo, por suas características essenciais, também pode ser definido como filosofia de vida, no lugar de religião. Talvez venha daí sua afinidade com a ciência.

DALAI LAMA NEUROCIÊNCIA DA CONCENTRAÇÃO

Pesquisa mostra mudanças nos cérebros de monges, durante a meditação Pesquisadores usam meditação para investigar a mente

Para o neurocientista Andrew Newberg, da Universidade da Pensilvânia, a complexa tarefa mental da meditação é uma das áreas de estudo mais promissoras para a ciência na próxima década. O cientista realizou experimentos com monges budistas tibetanos usando a tecnologia conhecida como tomografia computadorizada por emissão de fóton único [ver quadro acima].

As imagens mostram um decréscimo, durante a meditação, da atividade do lobo parietal, área ligada à orientação temporal e espacial. A diminuição de fluxo sanguíneo nessa região pode ser a responsável pela sensação de 'flutuação' que às vezes ocorre na meditação. Já a parte frontal do cérebro, associada à atenção, está mais ativa durante a prática. 'Faz sentido, já que a meditação requer alto grau de concentração', avalia Newberg.

No Brasil, existe uma linha de pesquisa em meditação, ioga e outras técnicas complementares em saúde na Unidade de Medicina Comportamental do Departamento de Psicobiologia da Unifesp, coordenada pelo professor José Roberto Leite. Essa linha iniciou-se com o doutorado da psicobióloga Elisa Kazasa. A partir de um encontro com o indiano Rishi Prabakar, criador da técnica de Siddha Samadhi Yoga, a pesquisadora elaborou um estudo sobre a prática meditativa e respiratória, o pranayama. 'Observou-se melhora de sintomas de ansiedade, depressão e baixo nível de atenção, dentre outros parâmetros avaliados', diz Elisa.

Além de afetar ondas, função e estrutura, a meditação pode interferir na química cerebral. Um estudo do Instituto John F. Kennedy, na Dinamarca, demonstrou que, durante a prática, o nível de dopamina no cérebro aumenta. Esse neurotransmissor é relacionado a sensações de prazer e motivação. Embora seja importante confirmar os resultados, outros trabalhos sugerem que a meditação ajuda a reduzir o estresse e melhora o sistema imunológico. Alguns planos de saúde nos Estados Unidos já oferecem descontos para os associados que a exercitam com regularidade.

'Como a ciência ainda não dispõe de instrumentos para mensurar objetivamente nosso mundo interior, as práticas meditativas, não apenas do budismo, fornecem importantes informações sobre esse aspecto de nossa natureza', diz a psicobióloga Elisa Kazasa, pesquisadora da Unifesp. 'Elas podem complementar informações obtidas por meio de instrumentos científicos, como inventários psicológicos, aparelhos de registro fisiológico e a moderna neuroimagem funcional', opina. É o que também pensa Alan Wallace, ex-monge tibetano e um dos intérpretes do Dalai Lama nos encontros do Mind and Life. Wallace compara as práticas meditativas com um telescópio destinado a 'olhar para dentro', para que possamos conhecer nossa consciência.

'Acho maravilhosa essa relação entre a ciência e o budismo, já que o próprio Buda era um cientista do interior', diz o lama Michel Rinpoche. O monge ficou conhecido há alguns anos como o 'pequeno Buda brasileiro', por ter sido identificado como a reencarnação de um lama tibetano. 'No Ocidente, ciência e religião sempre caminharam separadas. Por isso, não é de se admirar que haja uma resistência dos cientistas a aceitar o budismo', afirma a psicóloga Bel César, mãe do lama Michel e ex-presidente do Centro de Dharma da Paz. 'No entanto, o budismo não é uma religião, ou seja, um conjunto de dogmas. É uma filosofia que investiga, assim como a ciência, a natureza da mente', ressalta. A psicóloga toca em um ponto fundamental: o budismo, por suas características essenciais, também pode ser definido como filosofia de vida, no lugar de religião. Talvez venha daí sua afinidade com a ciência.

Dalai Lama
conhece o laboratório de Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin  e conversa com o cientista Steve Kosslyn, no encontro  do Instituto Mind and Life

'O conhecimento humano é setorizado para facilitar nossa compreensão', afirma a professora Lia Diskin, fundadora da Associação Palas Atena, organizadora da visita do Dalai Lama ao Brasil. 'Não se trata de juntar as duas disciplinas, mas abrir comportas para uma fecundar a outra', diz Lia sobre a relação entre o budismo e a ciência. Porém ela ressalta que a ciência não pode ser invocada para explicar o indemonstrável. 'Não se pode utilizá-la para validar a reencarnação, que faz parte de um universo desconhecido', opina.

A ampla gama de práticas e ensinamentos pertencentes ao domínio do budismo certamente vai continuar a instigar os cientistas a ampliarem seus conhecimentos e irem além do universo material já conhecido. Se depender da vontade do Dalai Lama, a recíproca continuará a ser verdadeira. 'Suponho que minha fascinação pela ciência ainda se encontra em um encantamento inocente pelas maravilhas que ela pode alcançar', escreve. Aos 70 anos, Dalai Lama continua com o mesmo espírito curioso da infância, quando estudava astronomia por conta própria e desmontava relógios para ver como as engrenagens funcionavam.